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Pesquisa prevê uso de mosquito
transgênico contra a malária

por Fernanda Marques

Mosquitos do gênero Anopheles são responsáveis pela transmissão do protozoário causador da malária - doença que mata mais de dois milhões de pessoas anualmente, sobretudo crianças menores de 5 anos. A maioria das vítimas vive na África, mas os brasileiros também sofrem com a doença: em 1999 a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) registrou mais de 600 mil casos de malária. O Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR/Fiocruz), de Belo Horizonte, em conjunto com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e instituições americanas, vai desenvolver um projeto que tem por objetivo criar um mosquito transgênico do gênero Anopheles que possa bloquear o parasita da malária.

Fotos do mosquito transmissor da malária. Acima, larvas, sendo a do meio
selvagem, enquanto as duas ao seu lado, diferenciadas pelas manchas verdes
(fluorescências), são transgênicas. A imagem de baixo segue a mesma lógica: o
mosquito adulto da esquerda é selvagem enquanto o da direita é transgênico

O mosquito transgênico representa uma alternativa de combate à doença, visto que os procedimentos tradicionais de controle da malária estão se tornando cada vez menos eficazes. "Os medicamentos usados contra os protozoários e os inseticidas aplicados contra os mosquitos já não surtem os efeitos desejados, porque surgiram parasitas e insetos resistentes a esses produtos em vários países do mundo", afirma o pesquisador Luciano Andrade Moreira, que coordenará o trabalho no CPqRR. Além disso, desenvolver uma vacina contra a malária é uma tarefa bastante difícil, porque os mecanismos genéticos do protozoário são bastante complexos. "Embora tentem há anos, os cientistas ainda não conseguiram produzir a vacina", diz Moreira.

Também vai levar algum tempo para o mosquito transgênico poder ser utilizado no combate à malária. Na fase final dos experimentos, uma ilha afetada pela doença, situada provavelmente na África, teria seus mosquitos comuns do gênero Anopheles totalmente eliminados com inseticidas e, então, os insetos transgênicos seriam introduzidos na área. O resultado esperado seria o bloqueio da transmissão da malária, sem a ocorrência de efeitos adversos para o homem e o meio ambiente. Caso fosse detectado algum problema de segurança envolvendo os mosquitos transgênicos, eles seriam exterminados por completo. E não haveria o risco de eles se espalharem para outras regiões, visto que o experimento seria realizado em uma ilha. "Acredito que deve demorar pelo menos uns dez anos até chegarmos a esta etapa do trabalho", avalia Moreira.

O primeiro mosquito transgênico foi criado nos Estados Unidos em 1998. Nesta ocasião, os cientistas criaram um mosquito do dengue que expressava um gene de vaga-lume e, por isso, seu corpo emitia fluorescência. "Este inseto não tinha a capacidade de bloquear a transmissão do vírus do dengue: ele foi fabricado apenas para comprovar a validade da técnica", afirma Moreira. Com o objetivo de validar a técnica para mosquitos transmissores da malária, cientistas ingleses produziram, em 2000, insetos Anopheles stephensi - vetores da doença na Índia - que expressavam um gene de água-viva (utilizado como gene marcador) e emitiam fluorescência. Em 2001, cientistas americanos transferiram este mesmo gene de água-viva para mosquitos Anopheles gambiae - comumente encontrados na África.

Contudo, os primeiros mosquitos do gênero Anopheles incapazes de transmitir o parasita da malária foram desenvolvidos em 2002 em um laboratório da Case Western Reserve University, em Ohio, nos Estados Unidos. Moreira, que fez pós-doutorado nesse laboratório, participou das pesquisas. Os pesquisadores criaram dois tipos diferentes de Anopheles stephensi transgênicos: um produzia um peptídeo sintético, enquanto o outro fabricava a enzima fosfolipase-A2, presente em veneno de abelha. Ao que tudo indica, o peptídeo sintético e a enzima se ligam à superfície de células do intestino do mosquito e, assim, protegem esse órgão contra a infecção pelo parasita da malária. Esse inseto, resistente à infecção, não teria como transmitir o protozoário.

Normalmente, o gene para uma enzima que digere sangue é ativado em células do intestino de fêmeas de Anopheles (só as fêmeas picam, porque precisam de sangue para o desenvolvimento dos ovos). De forma simplificada, os pesquisadores pegaram o fragmento de DNA que dirige a expressão deste gene do mosquito e o juntaram ao gene de abelha para a fosfolipase-A2 (ou ao gene artificial para o peptídeo sintético). O gene híbrido resultante foi, então, colocado em um vetor especial contendo o gene marcador de fluorescência. Este vetor foi injetado em embriões de Anopheles.

Em alguns poucos embriões, o gene híbrido foi integrado ao genoma do mosquito. Depois que estes embriões se tornaram adultos, eles foram cruzados com mosquitos normais, o que gerou de dez mil a 20 mil larvas de insetos. As larvas foram observadas ao microscópio de fluorescência: as que emitiam luz correspondiam aos organismos em que o gene híbrido havia sido inserido. Os adultos transgênicos obtidos a partir destas larvas passaram, então, por alguns testes.

No primeiro teste, um camundongo infectado pelo Plasmodium berghei - protozoário que causa malária em roedores, mas não em humanos - foi colocado em uma gaiola e utilizado para alimentar mosquitos transgênicos e normais. Alguns dias depois, os pesquisadores verificaram o grau de infecção dos insetos pelo parasita. "Constatamos um bloqueio da infecção de 70% a 90% nos mosquitos transgênicos", diz Moreira. Normalmente, ao picarem um animal doente, os insetos contraem o protozoário e passam, então, a transmiti-lo para animais sadios através da picada. "Este ciclo seria, portanto, interrompido pelos mosquitos transgênicos", explica o pesquisador.

Em outro teste, camundongos sadios foram colocados em gaiolas com fêmeas transgênicas e normais portadoras do parasita. Em mais da metade dos casos em que o camundongo foi picado por uma fêmea normal ele contraiu a doença. A ocorrência de infecção foi bem menor quando o animal foi picado por uma fêmea transgênica. "E a tendência é que, em campo, a transmissão da malária por fêmeas transgênicas seja ainda menor que a observada em laboratório", comenta Moreira.

De volta ao Brasil e trabalhando no CPqRR, Moreira vai produzir mosquitos Anopheles transgênicos com o financiamento da OMS. O objetivo de Moreira, que pesquisará em parceria com uma professora da USP, é criar um inseto incapaz de transmitir o parasita porque expressa um gene bloqueador originário de uma aranha. "A idéia é trabalhar com espécies de Anopheles encontradas no Brasil e com protozoários que causam malária em seres humanos", observa. Com o projeto, serão adquiridos equipamentos para os estudos e as pesquisas deverão começar em alguns meses.

Julho/2003